Para que todas as mídias sejam livres

III Fórum de Mídia Livre aponta comunicação como pauta estratégica e transversal para as diversas lutas e convoca mobilização rumo à Rio +20

Abertura do III FML, que aconteceu nos dias 27 e 28 na Casa de Cultura Mário Quintana). Imagem: Fora do Eixo.

Porto Alegre, berço do Fórum Social Mundial (FSM), recebeu novamente o encontro por um outro mundo possível, dessa vez em sua versão regional e com o tema “crise capitalista, justiça social e ambiental”. Entre as várias atividades que tomaram a cidade no final de janeiro, o III Fórum de Mídia Livre (FML) foi palco para a troca de experiências de comunicação e a construção de estratégias comuns.

A programação contou com relatos e análises da Primavera Árabe, da luta pela libertação palestina, dos indignados de Espanha e da regulamentação da mídia no Brasil pós Conferência Nacional de Comunicação e na Argentina – onde a Lei dos Meios foi aprovada. Outro tema de debate foram as “redes em redes”, que partiu de experiências para chegar em perspectivas de apropriação conjunta de práticas e plataformas livres, que facilitem a conjunção das diferentes lutas por uma sociedade mais digna, justa e livre.

Apropriação tecnológica, direito à comunicação e políticas públicas de comunicação

O III FML organizou-se a partir desses três eixos complementares entre si. O primeiro abrange as práticas de comunicação e a queda da barreira entre emissor e receptor – mais do que nunca, todos produzem e recebem informação, e surgem remixes e hibridizações. O segundo trata da importância de trazermos à tona os diversos discursos sociais e de garantirmos seu reconhecimento, para que a pluralidade de nossa sociedade encontre espaço nos meios de comunicação e escapemos à ditadura do pensamento único. Já o eixo referente às políticas públicas aborda a necessidade da regulamentação da mídia no Brasil, onde temos um cenário assustador de monopólio da radiodifusão e de falta de transparência e participação social nos processos decisórios.

Os eixos se complementam porque não basta nos apropriarmos dos meios acessíveis, desenvolvermos novas linguagens e que a mobilização social aconteça de forma efetiva e horizontal se os artigos da Constituição Federal referentes à comunicação continuarem sendo ignorados e carecendo de regulamentação, mantendo a propriedade dos meios de comunicação de massa em poucas mãos. Mas também não é suficiente garantirmos a democratização da mídia se não houver mobilização, envolvimento e construção de discursos. Além disso, não podemos travar a luta pela democratização da comunicação sem ter como objetivo maior a construção desse outro mundo mais justo e digno, onde todos tenham voz.

É importante termos claros os princípios que nos unem e as práticas que podem consolidá-los. O marroquino Mohamed Legthas, do portal E-joussour, compartilhou a experiência em seu país, onde a apropriação das redes sociais teve relevância para a organização popular contra o regime, mas terminou sua fala com o seguinte questionamento: de que adianta derrubarmos governos, ou acamparmos em praças, se tais atitudes não contribuírem efetivamente para a consolidação dos anseios democráticos?

Como disse o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em outra atividade do Fórum Social Temático, “cuidado: o resultado pode ser pior, pode levar a uma nova forma de barbárie ou barbarismo. Queremos uma democracia real e participativa, mas como construí-la?”, provocou.

Digital X Analógico e a comunicação como luta transversal

Ao mesmo tempo em que as novas tecnologias da comunicação se popularizam e ganham notoriedade em movimentos como os ocorridos no mundo árabe e na Espanha, as “velhas tecnologias” continuam tendo seu papel indispensável e não podem ser esquecidas. Exemplos disso são as rádios comunitárias e as intervenções urbanas, que utilizam os tradicionais pinceis, colas, papeis e tinta. “A mídia livre existe antes do Fórum de Mídia Livre, e existe até muito antes da internet”, enfatizou Renata Miele, do Centro de Estudos Barão de Itararé, durante o debate sobre direito à comunicação.

Entre as resoluções do III FML, estão a necessidade de superar a hegemonia da internet nas discussões acerca de mídia livre e de envolver os demais movimentos e organizações sociais. João Pedro Stédile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, defendeu na Assembleia dos Movimentos Sociais que é necessário “fazer a disputa ideológica, enfrentar os meios de comunicação de massa” para superarmos o capitalismo. A concentração da mídia e a necessidade de articulação e debate concernem não só aos movimentos diretamente relacionados à comunicação, mas ao movimento negro, de mulheres, indígena, ecológico, pela reforma agrária e urbana etc. “O que podemos fazer juntos daqui para a frente?”, questionou Stédile.

Contudo, é importante atentar para que, ao mesmo tempo em que as ferramentas digitais ganham relevância, diversas legislações restritivas estão tramitando no mundo, a modo do SOPA (Stop Piracy Act) e PIPA (Protect IP Act) nos Estados Unidos e do “PL do Azeredo” no Brasil. As tecnologias digitais não são as únicas, mas são estratégicas – e a liberdade e o compartilhamento na rede estão em risco.

II Fórum Mundial de Mídia Livre e a Rio +20

O III FML terminou com um grande chamado à construção do II Fórum Mundial de Mídia Livre (FMML), que de acordo com Bia Barbosa, do Intevozes, será “mais uma batalha internacional em defesa da comunicação como um direito e também um bem comum”. O encontro acontecerá entre os dias 16 e 18 de junho no Rio de Janeiro como uma das atividades da Cúpula dos Povos da Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, evento da sociedade civil paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. “A ideia é que a comunicação contribua para os processos de luta e resistência dos povos”, indicou Tica Moreno, do Grupo de Articulação da Cúpula dos Povos e da Marcha Mundial de Mulheres.

A proposta do II FMML surgiu no FSM 2011 em Dakar, no Senegal. Fazem parte da organização entidades como Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada, Coletivo Soylocoporti, Intervozes, Fora do Eixo, Pontão de Cultura da ECO/UFRJ e Revista Fórum. Internacionalmente participam, entre outras organizações, a Cáritas, a WSFTV – portal de memória audiovisual do FSM – e E-joussour, uma agência de notícias colaborativa do norte da África, que está à frente da organização de um Fórum de Mídia Livre naquela região.

O intuito é dialogar com as diversas lutas para tirar uma pauta comum em torno da comunicação. “O debate que une os defensores do midialivrismo e da democratização da mídia não é um debate corporativo, mas uma luta feita por todos que querem mudanças na comunicação”, defendeu Rita Freire, da Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada. E o Fórum Mundial de Mídia Livre ocorrer na Cúpula dos Povos propicia o cenário ideal para que essa construção conjunta se consolide.

 

Michele Torinelli

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

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